Instrumento de identidade indígena divide opiniões
por André de Souza e Chico de Gois / Cleide Carvalho e Eduardo Barretto /
Washington Luiz
Um índio aponta o arco e flecha durante a manifestação em Brasília:
confronto com a polícia - REUTERS/Joedson Alves
confronto com a polícia - REUTERS/Joedson Alves
Representantes dos indígenas que participaram de um protesto
anteontem em Brasília defenderam o uso do arco e flecha em
manifestações. Para eles, os instrumentos devem ser encarados não como
arma branca, mas dentro de um contexto cultural. A Polícia Militar (PM),
por outro lado, manifestou que se trata, sim, de uma arma branca e que
está à procura da pessoa que acertou uma flechada na perna de um
policial. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, evitou a polêmica
e limitou-se a dizer que cada caso deve ser analisado separadamente.
Ontem, o cacique Marcos Xukuru considerou o ato uma ação “natural” e afirmou
que os indígenas vão continuar utilizando arco e flecha nas
manifestações para realizarem rituais e se protegerem. Marcos disse que
não conhece quem realizou o ataque, mas explicou que o índio utilizou a
flecha por se sentir ameaçado pela cavalaria da PM. O Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), que presta assessoria aos índios,
observou que o equipamento é utilizado não apenas para guerra ou ataque,
mas para caça, pesca e rituais religiosos.
— Nós, indígenas,
temos nosso modo de vida, nosso arco e flecha, nossa borduna, que serve
para os nossos rituais. Aonde vamos levamos nossos instrumentos.
Estávamos dançando, invocando nossos rituais. Os cavalos se assustaram,
querendo cair no meio da pista, e de repente já vimos a fumaça das
bombas da Tropa de Choque. Se um de nós se sente ameaçado, atacado pelo
Estado, qual a reação? É uma reação natural — explicou o cacique.
O coronel Jailson Braz, chefe do Departamento Operacional da PM no DF
e responsável pela segurança do protesto, tem opinião oposta:
— A flecha é uma arma branca, sim, pode matar, é proibida.
Na quarta-feira, o Cimi chegou a informar que os índios só podem ser
detidos e interrogados pela Polícia Federal (PF). Também de acordo com o
Cimi, só o Ministério Público Federal (MPF) poderia apresentar
denúncias contra eles, e somente a Justiça Federal poderia julgar
eventuais irregularidades ou crimes. A informação foi desmentida pela
Fundação Nacional do Índio (Funai), que explicou que os indígenas
respondem a processo como qualquer um. Segundo a Funai, desde a
existência do Estatuto do Índio, de 1973, “a legislação deixou clara a
possibilidade de prisão e encarceramento do índio, ainda que lhe confira
um direito especial de semiliberdade”. Mas, para a Funai, o uso de arco
e flecha, como de vestimentas e pinturas corporais, deve ser
considerado como aspecto antropológico.
Ataque foi inusitado
Ela Wiecko, vice-procuradora-geral da República e coordenadora de um grupo
de pesquisa na Universidade de Brasília (UnB) sobre direitos étnicos,
corrobora a informação da Funai. Por outro lado, destaca que, no curso
do processo criminal, é preciso levar em conta a cultura do índio:
— É uma pessoa como qualquer um de nós. Ele pensa, sente. Agora,
naturalmente, ele tem a sua cultura. E mesmo com essa história de estar
num carro, de ter uma carteira de identidade, de usar roupa, de andar de
avião, isso não descaracteriza a pessoa de ser indígena.
O sociólogo da UnB Antônio Flávio Testa disse que a classificação do arco e
flecha como arma branca é uma questão de interpretação:
— É um instrumento de caça, mas o facão também é ferramenta e pode ser visto
como arma branca. Vai depender de como será o processo.
Maria Estela Grossi, também socióloga e integrante do Núcleo de Estudos de
Violência e Segurança da UnB, disse que o arco e flecha tem um
significado simbólico, mas que a polícia precisa se planejar para a
presença de armas perigosas em manifestações:
— O ataque a flechas foi inusitado, mas tem um significado simbólico. A flecha é algo
próprio do índio. A polícia não pode simplesmente responder violência
com violência, com bombas, e também não pode permitir que armas
passíveis de perigo sejam levadas para manifestações.
Para o antropólogo Stephen Baines, pesquisador da UnB, o arco e flecha não pode ser considerado arma branca, pois é usado como símbolo da identidade indígena, assim como cocares e pinturas de guerra. Segundo ele, a flecha deixou de ser vista pelos próprios índios como arma e hoje faz parte do reconhecimento de sua cultura:
— A flecha é usada apenas na caça de animais. Os índios têm consciência de que não adianta usar arco e flecha contra pessoas. Nas terras indígenas, utilizam armas de fogo para se proteger. Provavelmente, o disparo da flecha ocorreu num momento de
susto diante da ação policial. Se quisessem agredir, os índios teriam levado espingardas.
‘Não é para ferir ninguém’
O cacique Marcos Xukuru, de Pernambuco, que estava na manifestação em Brasília, afirmou que o arco e a flecha fazem parte dos rituais:
— Não é para atacar ou ferir ninguém. Levamos também o maracá, que é usado nas festas indígenas. São coisas do nosso dia a dia, e faz parte da nossa cultura levá-las a outros ambientes.
Segundo o cacique, os índios foram surpreendidos pela ação policial, e os cavalos se assustaram com os maracás:
— Usamos os maracás para invocar nossos espíritos de proteção, para que eles nos protejam e ajudem. Os cavalos se agitaram, e a Tropa de Choque começou a atirar. Até agora não sabemos quem disparou a flecha — afirmou.
Fonte: O Globo
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